Ouvimo-los o ano passado na colectânea de música bracarense À Sombra de Deus IV. Ouvimo-los e apurámos o ouvido. Vozes que se erguiam aos céus não para nos levarem a ascender com elas, mas para nos perturbarem lá do alto. Ritmo minimal e sintetizador tétrico e aquela voz com ecos de cânticos sacros, devidamente transformados em matéria profana, a cantar versos como “embalas o mal que em ti nasceu / És parto demo e finito em Deus”. Bracara Augusta, foi essa a canção que primeiro lhes ouvimos. O impacto foi suficiente para que, a partir daí, não mais os perdêssemos de vista.
Chegou depois um EP homónimo com um D. Sebastião vandalizada como capa (o “Desejado” cego e perdido: como havia ele agora de encontrar o caminho de regresso, rodeado ou não de nevoeiro?) e mantinha-se a sensação perturbadora e o ambiente negríssimo. Entretanto, deparámo-nos com uma versão ao vivo de F.M.I. em que o cantado originalmente por José Mário Branco, aqueles versos de fúria desesperada, eram adoptados pelos Ermo: anula-se o tempo e 1982, naquelas palavras enraivecidas e expelidas em golfadas, torna-se dolorosamente o nosso tempo. Na gravação, porém, não ficávamos por ali. F.M.I. desembocava na voz de Mário Viegas recitando o Cântico Negro de José Régio (“sei que não vou por aí!”) e culminava depois numa Grândola vila morena que irrompia como estranho refúgio de serenidade, a possível depois da visceralidade do que ouvíramos antes. Isto foi o antes dos Ermo. O melhor chegou agora.
A banda acaba de editar Vem Por Aqui, o primeiro álbum. O título é, obviamente, referência ao supracitado poema de José Régio. Na ilustração que dá capa ao disco, multiplicam-se os rostos: José Saramago, Salgueiro Maia, Camões, Amália, Álvaro Cunhal, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner. Ao centro, António Costa e Bernardo Barbosa, ou seja, os Ermo. “Aquele não é o imaginário da nação”, diz o primeiro, o vocalista, desde Braga (Bernardo é o homem das teclas e electrónicas). “É o nosso imaginário português. O álbum pode chamar-se Vem Por Aqui mas não pretende mostrar a direcção correcta. É a nossa direcção, é a nossa visão”.
É, dizemos nós, música que nos arrebata pelo lado catárctico da interpretação e pelo tom soturno de canções cuja base é electrónica saturada, equidistante em ambiente da kozmisch alemã, do trip-hop de Tricky, da música industrial, do tom lúgubre de alguma da discografia dos Mão Morta. É música que emana de um lugar muito específico: “Aquilo que está sempre presente é o facto de falarmos quase exclusivamente de Portugal e da nossa relação com a identidade deste país”. Música incrivelmente personalizada, qual OVNI sobrevoando, assustador ou benfazejo (depende dos olhos de quem vê), a psique cá da terra.
António Costa e Bernardo Barbosa, banda nascida em 2011 e formado por dois homens no início dos vintes, descobriram um lugar surpreendente. O que faziam antes não parecia conduzi-los aqui. António divertia-se: inventava uma banda black metal de um homem só ou tocava umas músicas de cantautor à guitarra. Bernardo, mais sério, lançava “uns EPs super estranhos” para a editora online Mimi Records. Quando se encontraram, Bernardo tentou produzir algumas canções de António — “deu um resultado muito mau”. Os Ermo surgiam pouco depois. Não nasceram de jams em estúdio. Nasceram de um encontro de ideias, tédio e irritações. “Fazemos o melhor que podemos musicalmente, mas o fulcral em Ermo são as ideias que queremos transmitir e não a música em si. A banda nasceu por causa disso.”
Não é por acaso que, quando avançamos na conversa e esta se centra em Braga e na geração bracarense da década de 1980, musicalmente marcada por bandas como os Mão Morta ou os Rongwrong, António Costa confessa que o que mais lhes interessa nesse período é a transversalidade da intervenção: “O que nos influencia não é tanto a música, apesar de os Mão Morta serem uma das minhas bandas preferidas, mas o espírito que animava tudo aquilo. Extraímos daqui qualquer coisa acima da música” — à semelhança, digamos, da famosa proposição de Simon Reynolds, segundo o qual aquilo que de mais interessante tinha o pós-punk inglês residia no facto de ser feito por gente que pensava em muito mais do que música.
É isso que pressentimos também em Vem Por Aqui, álbum em que o som que os Ermo pareciam tactear nas primeiras gravações ganhou contornos perfeitamente definidos e uma intenção clara. Começamos com o misticismo épico de Eu vi o sol, e avançamos pela canção de desgosto por amor de Correspondência — não é de uma pessoa que se fala, é de um país. À oitava e última canção, haveremos de chegar a um Pangloss, o de Voltaire — actualizado, mas ainda o ingénuo insuportável que cala e come porque, no fim, tudo correrá bem.
Entre o início e aquele fim, ouve-se uma voz que se torna grave e enrouquece quando a tensão aumenta, ouvimos essa voz construir melodia de catedral em ruínas, ouvimos como esta música de electrónica suja e percussão subterrânea sugere algo arrancado à terra, qual elo entre canto tradicional telúrico e esta catarse de urbanidade em queda (não por acaso, António Costa fala-nos do tempo que passou com Bernardo Barbosa a investigar as recolhas de Giacometti e similares). Música poderosa, esta que põe em cena um país em pantanas. Sem exaltações, sem paternalismos, sem referir personagem alguma destes tempos tristes. Os Ermo vão mais fundo: são o grito que se liberta enquanto uma raiva nos cresce nos dentes (e que se torna tanto alerta, quanto escárnio e autopunição). Não estranhemos, portanto, identificar em Porquê versos conhecidos, os de José Afonso cantando Cantigas do Maio, e percebermos como aquele “Ai Deus mo deu / Ai Deus mo levou” assoma como ameaçadora neurose pós-punk. Não, não estranhemos.
“Um dos problemas da música de intervenção é que quando falamos dela nos situamos no passado. Mas querendo fazer música de intervenção, continua a haver uma série de problemas por cantar e contra os quais protestar.” Os Ermo cantam-nos. De forma surpreendente, perante a qual a indiferença é impossível. Não querem pregar aos convertidos, não querem ser consensuais. “Os nossos concertos passam muito por uma ideia de performance. Aproximo-me do público, sento-me entre o público, salto, faço caras estranhas. Sinto que as pessoas se sentem desconfortáveis com isso. Mas se se sentem desconfortáveis, melhor. Quão mais repararem que a música é ela mesma perturbada, talvez se questionem, talvez sintam elas mesmas razões para se perturbarem.”
Sim, é impossível ficar indiferente aos Ermo e isso é o maior elogio que lhes podíamos fazer.
Mário Lopes in Ípsilon, jornal “Público” 28 de Novembro de 2013[Mário Lopes escreve segundo a antiga grafia]
Os Ermo atuam esta noite no Café Concerto do TMG às 22h00. A entrada é livre.
Artigo Completo: "Os Ermo cantam o nosso eterno descontentamento", texto de Mário Lopes do Ípsilon
Fonte: Teatro Municipal da Guarda
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