Comentário
de Maisa Antunes *
Estranhos dias à janeladá a ideia de abertura, uma abertura desafiadora, porque é preciso vencer o desafio de olhar sem culpa, e a astúcia de perceber uma saída aventureira, uma saída que quebra convenções [no sair], torna-se preciso arriscar um pulo para sair, ou arriscar-se assumindo outros papéis para olhar, para olhar-se, e encontrar este estranho que há em nós.
O livro traz a perspectiva de estar na fronteira entre o distante e o íntimo. Estranhos dias à janela contempla o fora para ver o que estar dentro. O ritmo das palavras com seus enunciados trazem os contrários sem estabelecer dicotomias, mas a sensação de incompletudes de complementaridade – quem é o outro que vejo? Eu próprio? E assim se torna um exercício de reflexos, um espelho.
É a janela do inesperado, e da espera paciente...
Estranhos dias à janela– Uma janela que abre fendas na memória para acessar as distâncias, com intimidade, e assim nos leva ao poema pessoano “navegar é preciso viver não é preciso”.
De cada janela em diferentes lugares do mundo: ruminações de perguntas, de questões de todos nós, respostas internas que generosamente inclui o outro, do outro lado da janela.
Estranhos dias à janelaé uma janela ampla que se transforma em varanda e nos oferece um lugar para sentar... para tiramos “a pedra do sapato” e arrumarmos o pensamento.
Estranhos dias à janelaconvoca filósofos/poetas que através da perfeição literária e poética expõem a imperfeição humana. E assim este livro nos coloca na ciranda da vida, trazendo as reflexões do quem somos e as ilusões que nos salvam.
Uma janela que é retrato, e sendo retrato revela-se também um auto-retrato. Assim este livro parece uma autobiografia de todos nós, digo, de cada um de nós.
*Maisa Antunes é doutoranda em Pós-Colonialismos e Cidadania Global – no CES – Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, com o projeto “A arte e a educação”; é colunista do Escrítica (www.escritica.com); e do Cidade do Anjo http://ift.tt/1wRfzOe; professora do Departamento de Ciências Humanas - Juazeiro, UNEB – Universidade do Estado da Bahia – Brasil.
Antevisão,
de Sérgio Reis *
Doze anos decorridos sobre a publicação de “O Mundos dos Apartes”, fazia já falta um terceiro livro de Mário Jorge Branquinho, reunindo textos recentes, inéditos e dispersos, alguns dos quais publicados no seu blogue, Seia Portugal. Longe de ser uma mera coletânea de textos avulsos, “Estranhos dias à janela” reafirma o autor como perspicaz observador crítico do seu tempo e dos lugares, partilhando generosamente com o leitor o prazer da escrita e o seu entendimento do mundo – no sentido em que Kafka gabava a orientação recebida do seu amigo Oskar: "Tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas. Sozinho não o podia fazer." (Franz Kafka, Carta para Oskar Pollak).
Os últimos anos, de crise económica e aflição social, impuseram temas e reflexões a que Mário Jorge Branquinho não podia ficar alheio, como cidadão responsável e interventivo, preocupado com as condições de vida das gentes da sua terra, região e país. No entanto, não se procure nestes textos aguilhões panfletários para além da reflexão crítica sobre o contexto em que se desenvolve o atual mal-estar social e político, em parte provocado pela crise económica mas também fruto da excessiva confiança geral no funcionamento das instituições democráticas. “Estranhos dias” que cada qual pode observar, analisar e comentar do seu ponto de vista, da sua “janela”, ou de várias perspetivas e outras tantas “janelas” abertas pelos jornais, televisão e Internet para um “país em bolandas”, com toda a gente “a querer pular a cerca da inquietação” (O mundo em bolandas). Basta recordar a importância da imprensa na vida de Mário Jorge Branquinho (fundador, administrador, diretor e colaborador de jornais locais e regionais) e a relevância que concede à escrita, além da sua paixão pela fotografia, para exprimir ideias, sensações e sentimentos, integrando-se pelo mérito no colégio literário senense e na história recente da cultura em Seia.
O que diferencia principalmente este livro dos anteriores, cuja leitura se recomenda para melhor apreciação do caminho percorrido, é a inegável dimensão poética da escrita. Uma escrita apurada, culta, que se desdobra em significados e sentidos. Uma escrita “em arco”, inspirada e inspiradora, cuja musicalidade faz lembrar o jazz poetry e o rap, ecoando ao longo da frase e da superfície do texto. Induzindo viagens, pelas “janelas de emoções” e muito mais além, até ao âmago do problema, ao “busílis da questão”, o “centro da periferia”. “Escrever em arco é partir, andar por lá, em aventuras de escrita (…) e voltar são e salvo, sem hipotecas narrativas. (…) É ir a muitos mundos e voltar (…), tantas vezes sem sair do lugar, sem estagnar!” (Escrever em arco). Viagens no sentido de incursões, observações avançadas, visitações, mas também “desviagens” – esses desvios à vista que permitem encarar novos e velhos problemas de perspetivas inusitadas, emboscando-os mais à frente na curva do tempo, para os resolver, muitas vezes sem querer ou por acaso (como no serendipismo?) pois “nem sempre vamos aonde queremos” (Partir daqui, a partir de agora). Mas quando voltamos de uma viagem, somos ainda nós ou já outra pessoa? Para Miguel Torga, viajar “é deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além" (Diário, 1937) e Mário Jorge Branquinho conclui justamente que “só não muda quem não acompanha nem quer sair do lugar” (E tudo mudou).
As fotografias que o autor articulou com os textos, pontuando o livro, permitem traçar o mapa das suas aventuras periféricas, como cidadão do mundo, “no cruzamento com outros, em ruas plácidas, ou em caóticos labirintos” (Inventário de sentimentos), captando momentos específicos e não apenas a memória dos lugares. Espreitando pela janela da máquina fotográfica as janelas do mundo, através das quais se avistam paisagens humanas, paraísos artificiais e outros abismos, “o paradoxo ilusionista em que se vive” (Olhar langue), os “novelos górdios” do nosso tempo e não apenas do nosso espaço e lugar. Os artistas, grosso modo, pintam as janelas nas fachadas, como olhos na cara das casas, mas os fotógrafos têm essa vertigem especial de perseguir imagens através de vidros, lentes de máquinas e janelas, aproximando-se imprudentemente da realidade – e por isso a fotografia é mais objetiva que a pintura. Mário Jorge Branquinho é fotógrafo amador (no mais autêntico sentido do termo “amador”, ou seja, “aquele que ama”) com diversas exposições e prémios no currículo, e as imagens soberbas que pontuam os espaços mentais do livro vão muito além do simples registo fotográfico ilustrativo, espicaçam a imaginação e a interpretação, desdobram-se em sugestões de narrativas.
Cada uma dessas imagens vale autenticamente por mais de mil palavras, procurando as legendas nas frases dos textos, tudo articulado com a engenharia possível numa obra desta natureza. Dois livros num só, como dois autores num só, que se completam e esclarecem mutuamente – um pouco à semelhança de Fernando Pessoa, poeta admirado por Mário Jorge Branquinho, que o evoca discretamente ao longo de “Estranhos dias à janela”.
O livro termina com palavras de incentivo, encerrando com a curiosa sugestão do fim de ano em agosto, um mês de calmaria propício a balanços, para começar do zero depois das férias, frescos e com ganas de refazer tudo um pouco melhor. “Afinal, porque é que não vale a pena, se nunca houve tanto progresso?” (O estado psicológico da nação. Pela positiva). “Em tempo de crise, de falta de muito, sobra a criatividade e a ousadia de fazer mais para fazer sentido” (Balanços). Assim seja.
*Professor e artista plástico, de Seia
À janela amanhece
por Alexandre Sampaio*
à janela amanhece
e o dia regressa
num turbulento esplendor
as sombras recolhem aos pés
primitiva casa de penhor
furtivas e insinuantes
e toda a noite trémula
orvalha
amanhece
irremediavelmente
a mesma luz cintila
e refracte
mas não reconheço em que tempo incide
a janela medeia o silêncio atraiçoado
e já o rouxinol que o canto segue
também tu querias que eu fosse pássaro
nascente
água desmedida que sobe ao olhar
e se desmancha sobre a mesa
mas partiste
ainda Endimião dormia
na primeira névoa
hiberna ao longe o estio da cidade
e são estranhos os dias à janela
que pairam sem florir
por isso o centeio dança com as mãos
no vidro frio da retina
e quando negras nuas se descobrem
são já as vozes dos camponeses
que as colhem
é o novo dia coroado
novo mastro peitoril
o vento ondula docemente o milheiral
(ressoa um sino na memória)
o pinhal emerge sumptuoso
(brisa de rosmaninho sobre a pele)
o rio espreguiça o seu ofício líquido
(verbo que humedece)
desenho no mapa embaciado
efémeros continentes
novas atlântidas e constelações
gestos e rotinas
que a claridade consome
gente que ri
gente que vê
gente que dá
gente que crê
gente que dorme
gente que morde
gente amontoada
a paisagem sua
abro a janela
(e digo-me adeus)
* Alexandre Sampaio, encenador, performance
Artigo Completo: Estranhos dias à janela, comentários ao livro
Fonte: seia portugal
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