Ali estavam os três com mais de oitenta anos, sentados na ladeira do ribeiro.
Tagarelavam coisas deles, claro, mas deviam ser genuínas.
Tão íntimas que nem conta deram que estava ao lado e mal pareceria não dar as boas vindas.
- Santas tardes para vocêmessês, disse eu.
Nem tempo deu para escutar o murmurar do ribeiro...
- Olha, dirigindo os olhos para as duas, andas por cá... - quando vais embora.
- Visita de médico, digo eu, sabe como são as coisas.
- Estás com pressa, pergunta.
- Nada que não se componha, acrescento.
- Ainda bem, sabes. (queres comer ou beber alguma coisa, estás à vontade), estava aqui a falar com elas e a olhar para a Estrecada, tinha mais pinheiros e muitos lobos.
A vida que a gente viveu, ai meu Deus...os medos!
- Tens tempo para escutar, pergunta.
- Claro, por quem e...
- Sabes que por vezes as pessoas não acreditam, mas ouve lá...
Nós por aqui, tínhamos os nossos porcos de criação e da ceva para matar no inverno, senão morria-mos à fome. Estavam nos cortelhos, percebes, nas lojas por debaixo, mas...conta tu agora (olhando para uma das senhoras).
- Lembras claro dos cortelhos (para mim), havia umas pias ou gamelas metidas na parede, metade dentro, metade para fora e nesta se deitava a vianda para os animais, três vezes ao dia.
Dei por mim a pensar, porcos, mas bem tratados. Estava rendido com a narrativa, apesar de ainda recordar algumas coisas, mas o modo genuíno como falava, parecia uma pintura fabulosa.
- Quando chegava a altura do Natal, já eles (os porcos), tinham sido fidalgos um ou dois meses antes da matação, comendo do melhor, restos das batatas, milho , centeio, etc. Tinham era de medrar...
Aqui entra o senhor que ia anuindo com a cabeça a cada frase. A vida era parecida em tudo.
Para eles que quase me pareciam dizer que jamais se pode esquecer os trabalhos tidos por necessidade, mas ao mesmo tempo a honra deles.
A conversa ia alongada, mas aproveitando o recolher das galinhas pelas senhoras, insistiu num copo de vinho, do dele, teimava em dizer que era do melhor. E era, de tal modo que veio mais outro.
A casa aonde nasci, fica ao lado e talvez por isso seja mais fácil a comunhão emocional.
- Enquanto elas não chegam vou te falar dos lobos. Tu ainda os viste, pois vieram comer um cãozito nas vésperas da páscoa, que te tinham dado, lembras pois choraste tanto...
- Se lembro, para toda a vida, balbuciei quase menino...
- Olha, vou te ser franco, eles andavam na vida deles e também tinham filhos para criar.
Também me arrepiei um dia quando o nosso vizinho ia acomodar de noite as ovelhas e se saltaram ao caminho, ali, estas a ver, sim, entre aqueles pinheiros e os olhos reluziam, os teus pais também viram.
- Até contam que a tia Maria gritava, salvem o meu D...
Não contes a ninguém, mas não era apenas pela fome e vou te contar um segredo, vinham pelo cheiro do chamusco...
Mas eis que no entretanto as mulheres chegam (e eu devia estar de abalada...), com o avental cheio de ovos, sendo que uma galinha pedrês havia desaparecido por andar no choco.
Zangadas, como se a gente tivesse culpa, uma coisa assim...
- Falaram de que, perguntam.
- Lobos e porcos, respondo assumindo a responsabilidade.
O senhor não gostou e irado (chateado) disse que disso percebia ele.
Até bati palmas, que me iam custando os olhos da cara, mas e por tal aqui vim escrever o sentir genuíno e verídico do pouco que nos vai restando.
Este Grande Senhor disse:
Olha Francisco, sei que escreves e eu não sei ler, mas eles, os lobos, tinham o passadiço deles, caminhos que poucos conheciam, vinham das lageiras, corriam os lameiros direitos ao carvalho da cruz, lombo velho e carriça . Eram lixados os gajos, deixa que te diga e quando cheirava a chamusco, valha-te Deus, as mulheres ficavam ainda piores que os homens e tinham razão.
Pergunta aqui à vizinha que ia morrendo para criar os porcos.
A porca parida, ficou meia maluca no parto, arreganhou os dentes e quase a comia, nao fora o homem dela ter aparecido, mas lá se criou e no dia da matação, parece bruxedo, desceram da serra e vieram cheirar...
O cheiro apelativo para eles era a palha queimada para chamuscar os porcos...e a fome.
Artigo Completo: Memórias chamuscadas
Fonte: "Blog dos Forninhenses"
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