Onde houvesse grande ajuntamento de pessoas, filhos de muitas mães, havia necessariamente, varapaus e bordões, nomeadamente em feiras, festas e romarias.
Todas estas aldeias que nos circundam tinham muita gente, a aldeia samarra em 1862 tinha 447 habitantes, cem anos depois, em 1960 tinha 180 fogos e cerca de 850 residentes, fruto da exploração mineira e hoje terá cerca de 150.
Atentemos na nossa, que, ao percorremos as ruas, vem-nos à memória quem residiu nesta e naquela casa, agora vazias e de paredes caídas, que, um pedreiro poderia reordenar deixando visíveis as modestas habitações que foram.
Quem não se lembra ou ouviu falar, das feiras anuais de Pinhel e de Trancoso, sobretudo esta, a de São Bartolomeu, que era considerada a maior feira de gado vacum e muar do país.
Ora, aqui, o varapau era um utensílio imprescindível aos lavradorese feirantes, logo, para se apoiarem pelos trilhos nocturnos da aldeia a caminho da feira e para encaminharem o “vivo”, o gado que iam vender.
Também serviam para se protegerem nas possíveis zaragatas, que eram comuns e desencorajar os ladrões de machos e burros, que durante a noite procuravam cortar o rabeiro “corda” destes, que os lavradores atavam às pernas, enquanto recostados na albarda procuravam dormitar, para de manhã tentarem negociar os animais que não venderam na véspera e comprarem um outro para substituírem o que venderam.
Numa dessas caminhadas - madrugadoras, a caminho da feira de São Bartolomeu que acontece em Agosto, um Samarra sente necessidade de sair do caminho por uns instantes para esvaziar a bexiga; a sua vaca apercebendo-se que ele não vinha na comitiva, também ela parou e esperou que o seu dono voltasse ao caminho e este, com um gesto de agradecimento, deu-lhe uma palmada no lombo e retomaram a caminhada juntando-se ao grupo.
Assim não era fácil, desfazerem-se destes animais, mas tinha de ser, porque, com esses valores procuravam equilibrar os seus parcos orçamentos, vendendo uma vaca feita e comprando uma vitela a desmamar, para assim iniciarem um novo ciclo; amansando-a, engordando-a, fazerem algum trabalho com ela e daí a uns dois anos, voltarem a fazer a caminhada madrugadora com destino à feira de São Bartolomeu, marcarem um lugar no vasto espaço da feira, onde se encontra a capela hexagonal de São Bartolomeu em que o nosso 6º Rei, o Rei Lavrador/Trovador - D. Dinis casou em 1282 com a muito jovem Princesa D. Isabel de Aragão, hoje Santa Isabel de Aragão, ou Rainha Santa Isabel; para a procurarem vender pelo melhor preço possível e repetir a tradição de anos anteriores, perspectivando-se a certeza de voltarem a ser reincidentes.
Capela de São Bartolomeu |
Quando era garoto o meu pai levou-me a esta feira e também ali dormitei ao relento embrulhado nas mantas da albarda, depois de termos comido um melão Almeirim, tendo como travesseiro a dita albarda da burra, e no silêncio do rítmico ruminar das vacas, ali ao lado, do balido dos cordeiros e do ruído ao longe, não tanto assim, dos carrosséis e do: suba-suba menina para mais uma corrida; oh cavalheiro dê lá uma voltinha com a senhora que isto está quase a fechar e esta volta dura mais, anunciavam os altifalantes, dos proprietários dos mesmos, pela noite fora e pelos donos das pistas de carrinhos eléctricos, onde um conterrâneo ao inicio da noite, tinha partido uns dentes, ao chocar com um outro carrinho numa curva feita muito por dentro, quando resolveu associar ao bom negócio que fizera com as ovelhas que vendera, a obtenção da carta de condução, mas ficou sem a carta e com os ditos dentes partidos, valeu-lhe o bom negócio na venda das ovelhas.
Recordo o acordar de sobressalto com o barulho de uma zaragata a uma certa distância, com o aldeão musculado de varapau em riste, para defender a propriedade da sua burra a quem já tinham cortado o rabeiro, que ligava a besta à sua perna e que este camuflara com as canas e o feno que o animal comia, enquanto o gatuno se punha a fresco.
A GNR era muita, mas os ladrões disfarçados de lavradores eram ainda mais.
Os feirantes Samarras procuravam ficar perto uns dos outros, apoiando-se mutuamente, nomeadamente quando era necessário “rachar o negócio” que estivesse num impasse entre o que o conterrâneo pedia e o feirante oferecia e assim o negócio fazia-se; “ninguém ficava em pouco por ceder”, dado que ambos cediam no seu pedido e oferta, com o intermediário, pois a palavra de uns e de outros era algo que todos respeitavam com honra e aqui a palavra de quem rachava, era palavra de juiz.
Com as migrações dos anos 50/60, os campos começaram a ficar abandonados e os jovens que deveriam dar continuidade às tarefas de seus avós e pais, nas lides dos campos já estava bem longe, pelas cinco partes do mundo e a situação foi-se agravando.
O advento dos tractores, para os que ficaram, deu a machadada final nestes animais de tracção nas lides agrícolas. As caravanas dos ciganos em carroças, também começaram a escassear, quando começaram a trocá-las por carinhas-furgões e o negócio dos muares também, por isso, se ressentia e hoje estão em vias de extinção, mesmo na aldeia samarra, onde, também já não se vêem vacas de trabalho.
As feiras reconverteram-se e estes animais e tudo o que os rodeava e lhes dava brilho foram objecto das cenas mais incríveis, que só não se transformam em lendas, porque estão documentadas.
Hoje, os varapaus já não são de freixo, castanheiro ou marmeleiro e também, não dão nas vistas, porque se guardam nos bolsos.
Nas Romarias, nomeadamente na da Sra. das Fontes, onde se juntavam centenas de romeiros, vindos de localidades distantes e bem distintas, a pé ou montados em bestas e se uns vinham para pagar promessas ou por devoção à Senhora, outros vinham com o intuito no alheio; porventura, num cordão de ouro a pender do pescoço de uma mulher romeira, ornando-lhe o colo, ou nuns brincos, nas orelhas de uma moçoila para lhe alindarem o rosto rosado e tostado pelo sol das segadas.
Aqui, os bordões, feitos de uma freixota ou de um carvalhoto, nas mãos calejadas dos seus homens ou noivos, desencorajavam os cobardes gatunos a se aproximarem delas.
Numa das romarias de 8 de Setembro dos anos 30 do século passado, dia da festa da Senhora das Fontes, enquanto os devotos/romeiros escutavam atentamente a pregação do pregador que viera de fora, aqueles pregadores que empolgavam os devotos, ao ouvirem a explicação da palavra do evangelho que o celebrante lera em Latim, era assim, e lhes falava aos sentimentos, quando se referia às virtudes da Senhora que vieram venerar e a quem vieram apresentar os seus problemas e pedir ajuda para os mesmos, como refere o Valdemar Tomás em: “Senhora das Fontes – O Encanto de Gerações”, que o pregador no fim do sermão, rezou:
“Senhora das Fontes,
Dos Mares, dos Rios e dos Montes,
Velai por este Povo, ajoelhado a Vossos pés,
Que Vos ama na bonança, na tormenta – em todas as marés,
Para que o afecto que por Vós nutre em seus corações,
Germine, desabroche e floresça nas futuras gerações!
Assim seja, respondeu o Povo;
Foto da capela da Sra. das Fontes |
Referíamos que, enquanto os devotos, recolhidos e empolgados com as palavras do pregador, contendo a custo os soluços e lágrimas, um malva dofalso-romeiro, tentava deitar a mão a uma dessas jóias de família e um soldado da GNR, que à distância tudo presenciava, sacou do sabre e cortou-lhe uma orelha; justiça punitiva na hora.
Mesmo com a orelha à banda, de um impulso, saltou o muro do recinto junto das capelas e desapareceu no meio da multidão, que se estendia por todo o recinto exterior, com a mão na orelha.
A vida que já não era fácil e castigada pelas tarefas campestres e mineiras,ainda era complicada por terceiros e falsos devotos.
Num dia de festa, na década de 50, ao terminar a missa campal e enquanto se organizava a procissão, o fogueteiro e um mordomo seu ajudante para estas funções, já se encontravam junto do local, onde seriam lançados os foguetes, na colina em frente do santuário e após rebentar o primeiro foguete, que era suposto dar inicio à procissão que ia até ao cruzeiro do centenário, com ida e volta, um segundo foguete rebenta no chão e com ele, por simpatia, todos os foguetes que se encontravam perto e que se destinava à descarga no fim da procissão, atingindo o mordomo o “Ti José Mendo”, que aqui homenageamos, que teve de ser levado para o hospital, tendo ficado com sequelas, deste triste acidente, para toda a vida.
Quando se encontram dois Samarras, a Ermida é sempre motivo de conversa e já podemos encontrar pequenos e vários textos sobre este Santuário várias vezes centenário e de certo que outros vão surgir, porque a Ermida da Senhora das Fontes foi e continuará a ser um manancial de notícias, que os Samarras devoram com avidez, porque a Ermida corre-lhes no sangue e porque aqui, sob o manto da Senhora muitas graças terão sido obtidas e agradecidas.
Junho 2012 (41)
Apaulos
Artigo Completo: Varapaus e Bordões, Feiras e Romarias Samarras
Fonte: O Samarra
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